sábado, 7 de junho de 2008

O SALTO DA SANDÁLIA

No bojo das lembranças e debates acerca de 1968, vou contar pra vocês uma experiência vivida em dezembro daquele ano, quando fazia faculdade em São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto, militante aguerrida e dirigente do movimento estudantil paulista.
Àquela altura, já havia sido decretado o Ato Institucional n° 5, o AI 5, em 13 de dezembro. Também havia sido desbaratado, em 12 de outubro, o movimento estudantil com a prisão de mais de mil estudantes, no sítio de Ibiúna no interior de São Paulo. As lideranças estudantis que escaparam de prisões e as que ficaram preparavam focos de resistência, sobretudo, em São Paulo e Rio de Janeiro, onde esse movimento era mais forte.
Em Ribeirão Preto, organizamos uma passeata que ocorreria às 18h, por conta da aglomeração de gente nesse horário, em torno da rodoviária, distante do centro da cidade. Ao mesmo tempo, definimos como estratégia de segurança a divulgação boca a boca que a mesma dar-se-ia no centro, na principal praça da cidade.
Pela manhã, tivemos uma reunião de checagem dos preparativos e a mesma prolongou-se além do previsto, por conta de uma polêmica de encaminhamento, e não pude ir em casa trocar de roupa e, principalmente, colocar um tênis.
Fui comer alguma coisa com um companheiro num boteco e quando saíamos de lá, tropecei e caiu um salto de cerca de 4 cm de um pé da minha sandália.Vivi, então, um dos dramas da minha vida:
- Não acredito! Quebrei o salto de minha sandália.
- E agora, Rose?
- Que vou fazer? Não dá para ir assim pra passeata.
- Sua casa é aqui perto? Não dá tempo de você ir lá?
- Nem pensar, o encontro com o pessoal para passar as senhas é daqui a 1h20 min.
- Tive uma idéia. Vamos ao banheiro tentar arrancar o salto do outro par da sandália.
- Perfeito. Assim, ficarei com a sandália sem nenhum salto.Grande idéia, André!
Voltamos ao boteco e André dirigiu-se ao dono:
- Você tem um alicate, uma faca grande, algo do tipo?
- Bem, vou ver. Mas, você precisa disso pra quê?
Apressadamente, André explicou ao dono do bar, pegou a faca e nos dirigimos ao banheiro, meio desconfiados, pois tínhamos que entrar os dois juntos.
- Segura firme a sandália, Rose, que vou enfiar a faca.
- Meu Deus, isso é perigoso, se você errar o alvo pode cortar minha mão
- Não tem jeito, vamos lá.
Depois de várias tentativas sem conseguir arrancar o salto que estava preso mais fundo do que raiz de mangueira, André banhado em suor, rendeu-se:
- Não adianta mais, desisto. Só temos 45 minutos, vamos correr para os nossos contatos.
- E eu? Vou desse jeito? Com um pé de sandália com salto e outro sem?
- Não vejo outro jeito.
- Tô ferrada! Só pode ser castigo dos milicos.
E saímos os dois em disparada.
Quando cheguei ao local da passeata, meu corpo doía todo, meus pés eram uma desgraça só. Eu havia me transformado numa falsa manca revolucionária, por obra e graça de um salto de sandália.